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O Blog Educar com Cordel é editado pelo poeta e escritor Paulo Moura, Professor de História e Poeta CORDELISTA. Desenvolve o projeto EDUCAR COM CORDEL que visa levar poesia e literatura de cordel para as salas de aula, ensinando como surgiu a Literatura de Cordel, suas origens, seus estilos, suas heranças. O Projeto Educar com Cordel é detentor do Prêmio Patativa do Assaré de Literatura de Cordel do MINC (Ministério da Cultura).

sábado, 15 de outubro de 2011

Um Dicionário - por Carlos Newton Júnior (Escritor, poeta e professor da UFPE)

Há cerca de dois anos, quando conheci pessoalmente o dramaturgo e escritor Adriano Marcena, contou-me ele a respeito de um “Dicionário” da cultura pernambucana que estava em vias de concluir e para o qual já procurava editor. Disse-me também que a obra era extensa e havia lhe consumido mais de uma década de trabalho. Fiquei, a um só tempo, curioso e admirado. Curioso porque, na dupla condição de professor e escritor (bom ou mau, como gosto de ressaltar), sempre fui aficionado aos dicionários; os dicionários, sobretudo os temáticos, são, para mim, uma ferramenta de trabalho indispensável, e é por isso que os tenho às dezenas, na minha biblioteca – dicionários de filosofia, de símbolos, de artistas plásticos, de termos técnicos de uma ou outra área, e assim por diante. A admiração deveu-se ao fato de o autor ter ainda me dito, na ocasião, que abandonara o emprego fixo que possuía, de professor, para dedicar-se com mais afinco à redação do seu “Dicionário”. Se eu já era um admirador de Marcena, sobretudo por conta de sua A ópera do sol, a admiração aumentou ainda mais, pela coragem que ele demonstrara ao investir seu tempo e suas reservas econômicas na realização da sua obra, na vivência daquela “vida verdadeira” a que todo escritor deveria ter direito, e que, em muitos casos, como nos versos de Manuel Bandeira, “poderia ter sido e não foi”.
O fato é que o “Dicionário” de Marcena terminou sendo editado, superando, em muito, qualquer expectativa que se pudesse ter a seu respeito. Trabalho de fôlego, bem escrito e aportado em critérios metodológicos previamente definidos, o Dicionário da Diversidade Cultural Pernambucana é uma dessas obras que impressionam logo de início porque parecem resultar de um esforço acima das medidas de um homem comum. Ora: a primeira tentação que se impõe à crítica é a de compará-lo às obras congêneres. Mas quando se recorda que até Câmara Cascudo, para realizar o seu célebre Dicionário do Folclore Brasileiro, valeu-se da ajuda de colaboradores e amigos, inclusive na redação de verbetes que aparecem assinados – sem contar a transcrição dos muitos verbetes de Linguagem Médica Popular do Brasil (Rio, 1937), de Fernando São Paulo, e do Vocabulário Pernambucano (Recife, 1937), de Pereira da Costa – percebe-se o quanto a obra de Marcena possui de proporções desmesuradas, o que levaria qualquer comentador a incluíla, logo, no domínio do Grandioso, daquele tipo de beleza que nos atrai, nos fascina e nos espanta ao mesmo tempo, pois queremos encará-la como obra coletiva e ela se apresenta como obra espantosamente individual.
Enquanto gênero, um dicionário será, sempre, uma obra lacunar e aberta. Não há que se apontar, nele, as omissões, tarefa que se revelaria tão fácil quanto desprovida de sentido. Nosso olhar deverá se voltar, portanto, para o lado oposto, o lado das inclusões. Nesse sentido, forçoso é reconhecer que não poucas vezes Marcena desenvolve textos bem mais extensos e profundos do que se poderia esperar de simples verbetes, compondo, sobre os respectivos temas, verdadeiros ensaios, indo às vezes além de obras como o Dicionário de Câmara Cascudo. É o caso, por exemplo, dos verbetes “Cangaço”, “Carnaval”, “Cachaça”, “Literatura de cordel”, “Rede”, entre outros. Para que esse “ir além” fosse possível, deve-se levar em consideração, claro, que Marcena se valeu, como grande pesquisador que é, dos autores de primeira grandeza que o antecederam, como foi o caso, inclusive, de Cascudo, que não se limitou a tratar desses temas no seu Dicionário do Folclore Brasileiro. Justamente por estar apoiado sobre esses largos ombros do passado é que Marcena pode enxergar, no presente, com mais desenvoltura e maior nitidez.
Por outro lado, a “estética da formatividade”, de Luigi Pareyson, leva-me a pensar que o fascínio diante do Dicionário de Adriano Marcena identifica-se com uma experiência de natureza estética, e é assim que insisto em falar, aqui, na “beleza do Grandioso”. Os comentadores de Pareyson esquecem-se de apontar a influência que este grande pensador italiano recebeu de Plotino. Que é a estética da formatividade senão a compreensão de que pressentimos a beleza quando percebemos a “intensificação” de um determinado ser? Há, portanto, indiscutivelmente, no Dicionário da Diversidade Cultural Pernambucana, beleza artística, e não me refiro somente à beleza literária dos ensaios que a obra contém, mas à beleza da grandiosa unidade do seu conjunto.
Sendo lacunar por natureza, reivindica o dicionário um processo de reescritura permanente. No caso de um dicionário autoral, como o de Marcena (e que engloba, diga-se de passagem, mais do que a cultura pernambucana, sendo mesmo um já quase acabado “Dicionário da Cultura Brasileira”), estamos tratando de um fantasma que jamais será exorcizado, a assombrar o seu autor com aquela humana impossibilidade de abarcar toda a complexidade do real. É este, de fato, o maior paradoxo da nossa raça, há muito identificado, entre outros, por um Lawrence Durrell, no seu admirável Quarteto de Alexandria: a cada passo que damos em direção ao luminoso conhecimento, mais se adensa, à nossa frente, o mistério insondável.
Constitui-se o fazer do Dicionário da Diversidade Cultural Pernambucana, portanto, como uma espécie de ofício fáustico, a reunir, na ânsia pela obtenção do segredo do mundo, a curiosidade do cientista; a vontade de sistema do pesquisador; o espírito de colecionador do antologista; a abertura para uma ecologia dos saberes, contrária ao academicismo estreito e conservador; o impulso de todo artista em direção à beleza; e, finalmente, aquele protesto contra o ter-de-morrer que é inerente a toda obra humana de natureza grandiosa, aberta e interminável.
Como se o autor estivesse vociferando, no limiar do abismo, contra o seu destino assinalado de homem mortal, a mostrar um pouco daquilo que é capaz de fazer, e certamente faria, caso lhe fosse concedido um tempo maior sobre a face da Terra.

Recife, 10-10-2011

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